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História e Filosofia do Yoga: Uma Síntese

História e Filosofia do Yoga: Uma Síntese

avatarpor Marcos Elias (Mahamuni das) data 04/10/2015

Introdução

Contar a história do yoga é uma grande pretensão, é quase como tentar desvendar um mistério. Aquilo que se esconde nos recônditos intocáveis da alma humana também está escondido entre os incontáveis milênios por onde esta alma habitou. Sabemos tão pouco acerca de nós mesmos hoje, e sabemos igualmente muito pouco acerca dos mistérios da história da vida humana na terra. Podemos afirmar, contudo, que o yoga, estando “à imagem e semelhança do homem”, certamente o acompanha desde o princípio de sua caminhada.

Embora a essência do yoga, a aspiração à transcendência (da qual trataremos ao longo destas páginas), possa ser encontrada em quase todas as civilizações antigas, seu nome e identidade tal qual o conhecemos, enquanto ciência da mente e da consciência, foram formalizados no contexto de uma cultura em especial, a cultura dos Vedas.

A civilização védica, segundo os historiadores, tem seus primeiros registros comprovados há mais ou menos 5.000 anos antes de cristo, tendo se originado às margens do rio Indo e do rio Sarasvati, na Índia norte-ocidental. Os sítios arqueológicos de Harappa e Mohenjo Daro são repletos de evidências a este respeito. Já para os praticantes da cultura védica, também chamada de Sanatana Dharma (lei eterna), os Vedas têm sua origem no “plano espiritual” e aqui estão desde a origem da criação deste universo, em tempos imemoriais.

 

Os 4 Vedas Primordiais

Do ponto de vista literário, o primeiro texto organizado a retratar este universo cultural de onde o yoga se derivou foi o Rg Veda, a partir do qual se desenvolveram o Yajur Veda, o Sâma Veda e o Atharva Veda. Juntos, estes quatro grandes hinos formam a literatura védica original, chamada de Shruti ou “revelação”, por terem sido “ouvidos” pelos sábios auto-realizados.

Estes quatro Vedas foram escritos em sânscrito, o idioma antigo desta civilização, sendo o seu alfabeto chamado de Devanagari ou “língua dos deuses”. A despeito de terem sido registrados na forma escrita, entre o quinto e o quarto milênio antes de cristo, é bem possível que estes hinos sejam ainda mais antigos, pois sua transmissão de geração a geração não se deu exclusivamente através da escrita, mas principalmente através da memorização e recitação oral, por meio de cantos que seguiam regras métricas e estéticas bastante precisas, estudadas hoje sob o termo de “Canto Védico”. É dito que esta tradição oral foi tão fielmente preservada que a maneira como os hinos são cantados atualmente coincide com a maneira como eram cantados em milênios passados. Muitas gerações de famílias de sacerdotes védicos (brahmanas) encarregaram-se e até hoje se encarregam deste feito histórico.
Ao longo do tempo, foram sendo anexados aos hinos (Samhitas) originais Védicos outros textos, a saber os Brahmanas, textos acerca das práticas ritualísticas dos sacerdotes, os Aranyakas, tratados de conhecimentos dos ascetas peregrinos das florestas, e finalmente, as Upanishads, principais tratados de filosofia metafísica e da ciência do yoga. Estes dois últimos formam o que chamamos de Vedanta (parte final dos Vedas).

Assim, podemos dizer que os quatro Vedas originais tomaram a forma de grandes compêndios de textos, cada um deles, divididos em quatro partes, mantendo esta configuração clássica até os dias de hoje:
 

VEDAS (Shruti – revelação)
Rg Veda - Yajur Veda - Sama Veda - Atharva Veda com a seguinte estrutura:  Samhitas - Brahmanas - Aranyakas - Upanishads 

 

A partir dos conhecimentos descritos nos Vedas, podemos dizer que inúmeras ordens filosóficas, religiosas, bem como inúmeros ramos da ciência tais como a matemática, astronomia, arquitetura e medicina foram adquirindo o status de disciplinas e formaram grandes tradições, todas em consonância com os preceitos védicos originais, caracterizando assim uma civilização incrivelmente organizada e coesa.

 

A Sociedade do Varnâshram Dharma

Em termos de organização social, a comunidade védica distribuía-se mediante o conceito de Varnashram Dharma, a divisão da sociedade em Varnas (ocupação social) e Ashrams (período da vida). Os quatro Varnas se referem à aptidão ou vocação natural de cada indivíduo e nada têm a ver com o distorcido sistema de castas atualmente vigente na Índia, embora lhe tenham servido de protótipo. Estes são:

1- Brahmana: são as pessoas mais voltadas para o cultivo de conhecimento, para o desenvolvimento e preservação da cultura e dos valores humanos. São eles os filósofos, estudiosos, professores, pesquisadores, artistas, escritores, sábios religiosos, médicos e curadores.
2- Kshatriya: são as pessoas mais voltadas para a liderança, as quais têm espírito empreendedor, gostam de administrar e possuem uma natureza “guerreira”. São mais propensas à administração pública, política, causas sociais, militarismo, lutas e exercício do poder.
3- Vaishya: são pessoas mais voltadas para a produção direta dos bens de consumo e sua comercialização. São eles os agricultores, pecuaristas, artesãos, alfaiates, comerciantes e lojistas.
4- Shudra: são pessoas com menos iniciativa e liderança, que se sentem mais felizes em servir como empregados dos demais. Estas pessoas preferem seguir as ordens e instruções de seus líderes numa relação de amo e servo, e não gostam de serem solicitadas às responsabilidades que exigem iniciativas próprias.
Os quatro Ashrams, ou etapas da vida são:
1- Brahmachari: esta vai desde o nascimento até aproximadamente 25 anos, e corresponde ao período de desenvolvimento e maturação do corpo, bem como educação e formação do caráter, da personalidade e da cultura básica de um indivíduo.
2- Grhasta: a chamada vida adulta, compreendida entre os 25 e 50 anos de idade. Esta é a fase marcada pelos deveres para com a família e para com a sociedade, na forma do trabalho e das conquistas materiais (bens, patrimônio, sustentação e educação dos filhos, afirmação da identidade social).
3- Vanaprastha: esta é a fase da aposentadoria, mais ou menos a partir dos 50 anos, quando a pessoa vai se desvencilhando das obrigações com o trabalho e proveniência da família, e começa a se concentrar em atividades menos voltadas para as necessidades materiais e mais voltadas para as questões espirituais.
4- Samnyasa: esta é a fase última da vida, reforçada a partir dos 75 anos, na qual o desapego das coisas materiais e da identidade corpórea é cultivada até as últimas circunstâncias, como uma preparação para a morte. Este é o momento em que as práticas espirituais e o estudo das disciplinas espirituais ganham total relevância.
Dentro desta divisão clássica, houve ainda muito espaço para todos os tipos de manifestações “desviantes”, como variadas ordens de ascetas e renunciantes, os quais contribuíram imensamente para a construção, ou perpetuação, do conhecimento yóguico.

Upavedas, as Ciências Védicas

Do ponto de vista científico, a cultura védica criou ainda grandes tradições de conhecimento, amplamente estudadas e praticadas até os dias de hoje, tais como:
UPAVEDAS (Ciências derivadas dos Vedas)
Ayurveda > Sistema medico
Dhanur Veda > Artes militares e marciais
Sthapatya Veda > (Vastu Shastra) Arquitetura e engenharia
Jyotish > Astrologia
Gandharva Veda > Música, dança e teatro

 

As Epopéias do Ramayana e Mahabharata

Cabe ressaltar que, dentro da imensa produção literária da civilização védica, encontramos ainda os dois maiores dramas épicos de todos os tempos, a saber o Ramayana de Valmiki, narrativa da saga do senhor Ramachandra, e o Mahabharata de Vyasa, no qual se descrevem a história das dinastias culminando com a intricada guerra de Kurukshetra, cenário no qual foi falada a Bhagavad Gita, sem dúvida o mais apreciado clássico de toda a literatura védica e o mais representativo texto de ensinamentos espirituais desta civilização. Dividido em 18 capítulos, cada um deles descreve um aspecto da filosofia do yoga. Estima-se que a Bhagavad Gita, bem como o texto todo do Mahabharata, tenha sido escrito entre o segundo e primeiro milênio antes de cristo, embora narrem fatos possivelmente ocorridos no terceiro milênio a.C. Já o Ramayana, embora tenha sido escrito em época posterior, narra uma história que antecede o Mahabharata em ao menos duas gerações.

 

Shad Darshanas, as Seis Escolas Clássicas da Filosofia Védica

Em meados do primeiro milênio antes de cristo, presume-se que a cultura e as tradições filosóficas dos Vedas tenham alcançado sua máxima maturação. Durante este período seis sistemas filosóficos ocuparam o lugar de destaque e foram chamados de Shad (seis) Darshanas (visões). Eram eles o Nyaya (sistema de lógica), Vaisheshika (distinção entre as categorias da existência), Samkhya (cosmologia/ontologia), Yoga (psicologia), Purva Mimamsa (ritualística e ética) e Vedanta (metafísica).
Estes seis sistemas de pensamento longamente conviveram e dialogaram entre si, e foi neste período (aproximadamente de 1.000 AC até 500 DC) que grandes sábios, porta vozes destas tradições, ocuparam-se em redigir os textos que as consagrariam para a toda a posteridade, estes textos foram chamados de Sutras. Cabe ressaltar ainda que estas seis escolas foram consideradas ortodoxas (âstika) por estarem de acordo com as escrituras védicas, diferente de outras tradições chamadas heterodoxas (nâstika), como o Lokayata, o Jainismo e o Budismo, as quais nunca se preocuparam em fundamentar suas bases na revelação védica.

Os Seis Darshanas e sua literatura:
Nyâya (lógica) > Nyaya Sutras de Akshapada Gautama
Vaisheshika (distincionismo) > Vaisheshika Sutras de Kanâda
Sâmkhya (ontologia) > Samkhya Sutras de Kapila e Samkhya Karika de Ishvara Krishna
Yoga (psicologia) > Yoga Sutras de Patanjali
Pûrva-Mîmâmsâ (ritualística e ética) > Mimamsa Sutras de Jaimini
Uttara-Mîmâmsâ ou Vedânta (metafísica) > Brahma Sutras ou Vedanta Sutras de Badarayana

 

Nyâya

Fundada por Gautama por volta de 500 a.C, esta escola, em grande semelhança à filosofia grega de Aristóteles, busca enunciar regras válidas para a argumentação lógica e para o discurso retórico. A preocupação básica deste sistema gira em torno da epistemologia, ou seja, visa elaborar quais são os meios através dos quais podemos adquirir um conhecimento válido. Esta escola dialoga com o yoga na medida em que discorre sob as várias formas de percepção, analisando o estado meditativo como uma maneira especial de obtenção de conhecimento. O objetivo final do estudo do Nyâya, à semelhança dos outros Darshanas, é elevar o seu adepto ao nível de Apavarga ou libertação do sofrimento.

Para tal propósito, Gautama propõe o conhecimento a partir de dezesseis categorias (padârthas), muitas das quais são também apresentadas por Patanjali em seus Yoga Sutras:

1- Pramâna: o meio pelo qual se obtém o conhecimento. Pode ser de 4 tipos, a saber:
1.1- Pratyaksha (percepção dos sentidos)
1.2 – Ânumâna (dedução lógica)
1.3 – Upamana (comparação ou analogia)
1.4 – Shabda (testemunho verbal)
2- Prameya: o objeto de conhecimento. 12 são os objetos a serem conhecidos:
2.1 – Âtman (a alma)
2.2- Sharîra (o corpo)
2.3 – Indriya (os sentidos)
2.4 – Artha (os objetos dos sentidos)
2.5 – Buddhi (o intelecto)
2.6 – Manas (a mente)
2.7 – Pravrtti (a atividade)
2.8 – Dosha (o erro)
2.9 – Pretya bhâva (a experiência de morte)
2.10 – Phala (o fruto da ação)
2.11 – Duhkha (a dor)
2.12 – Apavarga (a liberação)
3- Samshaya: a dúvida.
4- Prayojana: o objetivo ou meta do conhecimento.
5- Drshtânta: o exemplo.
6- Siddhânta: a conclusão.
7- Avyaya: sequência de argumentos (silogismo), como no exemplo:
7.1- Pratijña (proposição: há fogo dentro da casa)
7.2- Hetu (prova: de lá sai fumaça)
7.3- Udâharana (argumento: onde há fumaça, certamente há fogo)
7.4- Upanaya (recapitulação: sai fumaça da casa)
7.5- Nigamana (conclusão: portanto, há fogo na casa)
8- Tarka: o raciocínio hipotético.
9- Nirnaya: a comprovação.
10- Vâda: a objeção.
11- Jalpa: a disputa ou contra-argumentação.
12- Vitandâ: a polêmica.
13- Hetvâbhâsa; o sofisma.
14- Chala: a fraude ou subterfúgio.
15- Jâti: a objeção superficial.
16- Nigrahasthâna: argumento insustentável.

Vaisheshika

Fundada por Kanâda por volta de 600 a.C, esta filosofia descreve seis categorias (vishesha) primárias da existência, e afirma que é apenas mediante absoluta compreensão destas categorias que o homem pode alcançar a libertação:

1- Dravya ou substância: divididos em terra (prthivî), água (apas), fogo (tejas), ar (vâyu), éter (âkâsh), tempo (kâla), espaço (dik), mente (manas), espírito (âtma).
2- Guna ou qualidades: quente (ushna) e frio (shita), claro (shukla) e escuro (krshna), leve (laghu) e pesado (guru), sutil (sukshma) e denso (sthula) e assim por diante.
3- Karma ou ação/movimento.
4- Samânya ou “o todo”.
5- Vishesha ou “a parte”.
6- Samâvaya ou inerência: se refere à relação entre estas categorias tais como entre a substância e suas qualidades, entre o todo e suas partes distintas.

 

Samkhya

Talvez a filosofia que mais intimamente dialogou com o Yoga, tendo ambas as escolas pressupostos metafísicos e ontológicos muito semelhantes. Esta filosofia parte do princípio de que o Todo divide-se em duas categorias fundamentais:
1- Purusha (dimensão espiritual) formado de pura consciência, sendo esta auto-existente, eterna e imutável.
2- Prakrti (dimensão material) formado de 24 categorias ou Tattvas, sendo elas:
1- Pradhâna (matéria no seu estado amorfo e imanifesto)
2- Buddhi (inteligência / princípio organizador)
3- Ahamkâra (noção de eu / identidade)
4- Manas (mente)
5- Os cinco Jñâna Indriyas, sentidos de conhecimento (shotra-audição, tvak-tato, chakshu-visão, rasana-paladar, ghrâna-olfato).
6- Os cinco Karma Indriyas, meios de ação (vâk-fala, pâni-manipulação, pâda-locomoção, upastha-reprodução, pâyu-excreção).
7- Os cinco Tanmatras ou princípios sutis da matéria percebida pelos sentidos (shabda-aquilo que é audível, sparsha-tocável, rûpa-visível, rasa-degustável, gandha-cheirável).
8- Os cinco elementos consubstanciados (akash-éter, vâyu-ar, agni-fogo, apah-água, prthivî-terra).
Afirma ainda que a Prakrti, com suas 24 categorias, está sob a regência de 3 atributos ou qualidades (Gunas), os quais regem todos os fenômenos. São eles:
1- Tamas (da raiz tam-sufocar): inércia, resistência, torpor, ignorância.
2- Rajas (da raiz rañj-mover): movimento, excitação, paixão.
3- Sattva (da raiz as-existir): harmonia, sustentação, equilíbrio, bondade.
Observamos que a filosofia Samkhya, diferentemente do Vaisheshika, traz uma perspectiva mais fenomenológica ao enunciar as categorias da existência como uma espécie de “desdobramento” do sutil para o denso, tomando como ponto de partida o sujeito ou Purusha, “aquele que vê”. É quase como se a existência do mundo externo fosse um desdobramento da mente, ao passo que esta só existe como referência ao sujeito Purusha.

 

Yoga

Patanjali, em seus Yoga Sutras, (texto aparentemente escrito entre 500 a.C e 100 b.C), busca definir os conceitos fundamentais do yoga e explicar o seu método. Presume-se que o conhecimento apresentado no texto não foi algo novo, mas a formalização de uma tradição que já colocava estes ensinamentos em prática desde tempos longínquos, remontando aos Vedas e às Upanishads.
Fortemente embasado na visão dualista do Samkhya, a filosofia de Patanjali visa elucidar a relação existente entre Purusha (consciência) e Prakrti (matéria) e explica que entre eles existe um elo, chamado de Samyoga, no qual o Purusha encontra-se num estado de alienação (Avidya) diante do “encanto” exercido por Prakrti. O objetivo do processo de Yoga é desfazer esta Samyoga através de uma discriminação ininterrupta (Âviveka) que trará o Purusha de “volta a si”, compreendendo sua liberdade (Apavarga ou Kaivalya) inerente em relação à Prakrti. Isto significa dizer que o objetivo do yoga seria, em termos gerais, a libertação do espírito em relação à matéria.
Para alcançar esta condição de auto-consciência e liberdade espiritual, propõe o caminho do Ashtanga Yoga, o caminho óctuplo, descrito como:
1- Yama: cinco observâncias éticas chamadas de Maha Vratam, valores universais independentes de tempo, lugar e cultura. São eles a não-violência (ahimsa), a veracidade (satya), a não usurpação e exploração alheia (asteya), a moderação dos sentidos e castidade (brahmacarya), o não cultivo da possessividade (aparigraha).
2- Niyama: cinco práticas fundamentais de auto-aprimoramento. São elas a limpeza do corpo e da mente (shaucha), o contentamento (samtosha), a disciplina (tapah), o auto-conhecimento (svadhyaya) e a subordinação à Deus (Îshvara-pranidhana)
3- Âsana: saber posicionar o corpo corretamente para a prática da respiração e da meditação. A postura deve adquirir as qualidades de firmeza estável (sthira) e relaxamento confortável (sukham). Mediante estas qualidades, o corpo não será perturbado pelas oscilações ao redor.
4- Prânâyâma: prática de técnicas respiratórias que visam desenvolver o alongamento (dirgha) e a sutilização (sukshma) de suas quatro etapas (inspiração, retenção, exalação e suspensão) como meio de preparação para a meditação profunda.
5- Pratyâhâra: a introversão e pacificação dos cinco sentidos que garantirão a concentração ininterrupta.
6- Dhâranâ: concentração profunda em um só princípio ou objeto de meditação.
7- Dhyâna: meditação que naturalmente decorre da concentração.
8- Samâdhi: efeito de lucidez absoluta que decorre naturalmente da profundidade do estado meditativo.
Segundo Patanjali, quando esta técnica meditativa é aplicada constantemente sob a égide de Vairagya, o desapego do observador em relação àquilo que é observado, então o estado de Kaivalya ou libertação será gradualmente e definitivamente conquistado.

 

Pûrva Mîmâmsâ

Esta escola foi assim chamada porque discorre sobre os temas abordados principalmente na literatura dos Samhitas e dos Brahmanas, os quais são, como já vimos, a primeira parte (pûrva significa aquilo que vem antes) dos 4 Vedas originais.
O tema principal desta escola é a ética ou virtude, designada sob o termo de Dharma. Diferentemente das outras escolas que se preocuparam com a libertação, esta traz a idéia de que através do cumprimento correto dos deveres e das boas ações, junto da abstenção de praticar atos nocivos, a pessoa acumula méritos que farão com que sua condição de existência melhore cada vez mais. O propósito desta escola seria, portanto, garantir ao adepto uma vida feliz e abundante neste mundo, através da boa gestão de suas ações (karma) e do cumprimento de certos rituais prescritos (yajna) nos Vedas. Como podemos observar, este ideal não é adotado pelas demais escolas, as quais consideram que as ações e seus frutos, por melhor que sejam, não podem garantir a liberdade completa do sofrimento. Este continuará existindo enquanto o espírito permanecer “aprisionado” sob os laços do apego à vida “mundana”.
Esta tradição também foi chamada de Karma Kanda, a porção dos Vedas que trata de administrar as ações para colher os seus frutos.

 

Uttara Mîmâmsâ ou Vedânta

Esta escola foi assim chamada porque discorre sobre os temas abordados na parte final (uttara-o que vem depois / anta-fim) dos Vedas. Como já vimos, esta é composta dos Aranyakas e Upanishads. Esta literatura é de grande conteúdo metafísico e concentra seus esforços em descrever Brahman, a Realidade Absoluta de Deus, e os meios através dos quais o adepto poderá conhecê-la e unir-se a Ela.
Baseado nesta literatura é que Bâdarâyâna compõe, aproximadamente entre 500 a.C e 200 d.C o Brahma-Sutra (também chamado de Vedânta-Sutra), um dos mais bem elaborados tratados de metafísica já escritos em toda a história. Com o passar do tempo este texto, em concomitância com as Upanishads e a Bhagavad Gita, passaram a ser a referência absoluta a partir da qual os grandes filósofos e reformadores religiosos da Índia configuraram o hinduísmo tal como o conhecemos hoje, em suas diferentes vertentes. Estas três escrituras juntas são chamadas de Traya-Prasthana.
Dentre os grandes autores da filosofia vedanta, podemos destacar, em ordem cronológica:
1- Adi Shankaracharya (788-820 d.C) fundador da filosofia de Advaita Vedanta.
2- Râmânuja (1017-1137 d.C) fundador da filosofia de Vishishta Advaita Vedanta
3- Madhva (1238-1317 d.C) fundador da escola de Shuddha Dvaita Vedanta
Embora todas baseadas nos mesmos textos fundamentais, estas diferentes escolas de Vedanta divergiam entre si em torno de algumas interpretações, e travavam grandes debates e duelos filosóficos para chegar àquela que seria a interpretação mais completa. Podemos dizer que o tema central destas divergências girava em torno do questionamento de qual a relação existente entre Brahman (o Absoluto), Jiva (as entidades vivas) e Jagat (o mundo material), e consequentemente, qual o objetivo a ser alcançado mediante esta compreensão.

 

Advaita Vedanta de Shankara

Esta escola recebe este nome decorrente de sua perspectiva inteiramente monista (a-não, dvaita-dualidade). Shankaracharya foi discípulo de Govinda, o qual foi discípulo de Gaudapada, predecessores que já afirmavam a interpretação monista dos Vedas. Porém foi Shankara quem escreveu os comentários das Upanishads, do Vedanta-Sutra e da Bhagavad Gita, a partir dos quais esta escola se consolidou. Com o tempo, esta tradição também foi chamada de Smarta Brahmana.
Para Shankara, a única realidade é Brahman, sendo este sem qualidades (nirguna), sem forma (nirâkâra), sem características (nirvishesha), eterno, onipresente, imutável e não agente (akarta). Toda a manifestação deste universo (jagat) com seu conjunto de qualidades, formas, diversidades e atividades são considerados um efeito de Mâyâ, uma espécie de poder ilusório de Brahman. Já os seres vivos (jiva-atma) são o próprio Brahman absoluto, porém acreditam possuir uma individualidade limitada, distinta do todo, por estarem sob o encanto de Mâyâ, condição chamada de avidyâ, ignorância.
Podemos dizer que a filosofia de Shankara está alicerçada no preceito:
“Brahma satyam jagan mithya, jîvo brahmaiva nâparah – O Brahman é real, o universo é irreal. A alma individual é idêntica à Brahman, o qual é Um sem segundo.”
O objetivo do adepto desta escola é atingir Moksha, a libertação da ignorância que o faz acreditar estar preso à realidade ilusória deste mundo manifesto e à realidade ilusória de uma identidade pessoal limitada e finita.
Para alcançar a libertação, o caminho (sâdhana) estabelecido por Shankara foi estruturado em 4 pontos:
1- Vairâgya: desapegar-se de tudo o que é relativo, finito, limitado.
2- Viveka: praticar a discriminação correta (Eu sou Brahman).
3- Shatsampatti: conduta adequada baseada em Shama (tranqüilidade), Dama (autocontrole), Uparati (equânimidade), Titiksha (tolerância), Shraddhâ (confiança), Samâdhâna (concentração).
4- Mumukshutvam: aspirar pela libertação.
O processo do Advaita Vedanta é a prática de Jñana-Yoga, o cultivo do conhecimento. Para esta escola, Karma Yoga (ação) ou Bhakti Yoga (devoção) são meros acessórios limitados, ao fim não podem produzir libertação pois a ignorância só pode ser destruída pelo conhecimento. E uma vez que Brahman é absoluto, Um sem segundo, e o ser vivo é este Brahman, não há ação a ser feita, tão-pouco um “Deus” a ser adorado, apenas deve-se compreender que o ser vivo já é este Brahman absoluto. Assim, a realização desta verdade é só uma questão de entendimento, e depende da prática ininterrupta da renúncia e da meditação constante nas grandes afirmações (Mahâ-Vâkya) das Upanishads:
“Tat Tvam Asi – És como Ele é” “Aham Brahmâsmi – Eu sou Brahman” “Sarvam Khalv Idam Brahma – Tudo é Brahman”

 

Vishishta Advaita Vedanta de Ramanuja

Ramanujâcharya, nascido dentro da tradição dos Vaishnavas (adoradores de Vishnu) do sul da Índia, foi o próximo reformador a escrever consistentes comentários ao Vedanta-Sutra, Bhagavad Gita e Upanishads. Sua divergência aos ensinamentos de Shankara lhe rendeu a expulsão do ashram de seu próprio mestre Yâdavaprakâsha. Viveu por 120 anos e foi considerado o maior filósofo dentro da tradição do vaishnavismo.
A filosofia de Ramanuja surge como uma crítica a alguns dos argumentos de Shankara. Esta foi chamada de Vishishta Advaita por ser uma espécie de monismo (advaita) ao considerar que Brahman é a realidade única, porém diferente de Shankara que afirmava ser Este sem qualidades (nirguna) e sem características (nirvishesha), Ramanuja afirma que Brahman possui todas as qualidades e características contidas em si mesmo (vishishta). A implicação disto é que nesta concepção o mundo (jagat) e os seres vivos individuais (jiva) não são ilusórios, mas reais, porém são como que atributos de Brahman. Por isso a idéia de monismo (advaita) qualificado (vishishta). Apesar de serem reais, o mundo e os seres vivos são dependentes de Brahman, enquanto Este é independente de tudo.
O conceito de Mâyâ como justificativa para dizer que o mundo da multiplicidade tal como o percebemos não é real também é questionado. Se o Brahman é único e não diferenciado, então Mâyâ é alguma outra coisa que não o Brahman, logo o Brahman não é mais único e indiferenciado. Da mesma forma, se a entidade viva é idêntica ao Brahman, como pode ela sofrer sob o jugo da ignorância? Por estas razões Ramanuja não acreditava na filosofia de um monismo radical.
Estes argumentos desviam em parte o caminho de Jnâna Yoga para Bhakti Yoga, pois apenas o amor, a devoção e a entrega ao Brahman (aqui tranquilamente associado à idéia de um Deus adorável) poderão levar o adepto à liberdade, uma vez que apenas Dele emana esta suprema liberdade. Deste modo, ao invés da recitação dos mahâ-vâkyas, a prática se concentra nos cantos e hinos devocionais, os quais exaltam as qualidades de Brahman, e no processo de adoração das deidades nos templos, as quais representam Brahman neste mundo manifesto. Ramanuja enfatizava nestas práticas a noção de Prapatti, que é o desenvolvimento de um espírito de rendição e entrega incondicional a Deus. Para ele, a “absorção amorosa” na natureza de Deus é superior à liberação monista, e nela não há uma dissolução do eu individual em Deus, mas uma comunhão entre ambos.
Ao lado da tradição Smarta, o Vaishnavismo Vishishta Advaita compõe o quadro das duas tradições mais fortes e disseminadas de todo o hinduísmo.

 

Dvaita Vedânta de Madhva

A terceira escola de Vedânta que podemos destacar foi a de Madhvâcharya, contemporâneo de Shankara e de Ramanuja, o qual propôs uma interpretação distinta dos Vedas, negando por completo a filosofia monista e estabelecendo uma visão puramente dualista, por isso sua filosofia foi chamada de Shuddha Dvaita (dualismo puro).
Nesta visão, Brahman (Deus), as Jivas (almas individuais) e Jagat (o mundo material) são absolutamente distintos e reais. Não há ilusão na realidade deste mundo e tão pouco ilusão no conceito de que cada ser vivo possui de fato uma individualidade. Além disso, Deus é uma realidade distinta de tudo, este mundo e os seres vivos não fazem parte, por assim dizer, do “corpo de Deus”. Postula que Deus é independente de tudo, porém o mundo e os seres vivos são dependentes de Deus.
Novamente, o caminho prioritário para Madhva é Bhakti Yoga, o desenvolvimento de amor e devoção à Deus. Um ponto importante desta filosofia contudo é que ele considera que nenhum esforço humano pode garantir ao ser vivo a liberação (Moksha), mas esta acontece apenas pela “Vontade” ou “Graça” de Deus. Neste sentido, sua filosofia se assemelha muito à visão do cristianismo.

A tradição do Hatha Yoga

O Hatha Yoga é, sem sombra de dúvidas, o aspecto do Yoga mais conhecido e que mais influenciou o nosso mundo ocidental. Quando pensamos em Yoga imediatamente o que nos vem à mente são as práticas de posições exóticas com o corpo, técnicas de respiração e de relaxamento psico-físico.
Presume-se que estas práticas já estavam presentes desde os primórdios da cultura védica. Porém, ganharam força entre as várias linhagens de ascetas durante o primeiro milênio d.C.


O termo Hatha Yoga é comumente interpretado de duas maneiras. A primeira concebe a palavra hatha em seu sentido literal, designando “força”, “violência”, ou seja, uma prática que requer a aplicação do esforço e da potência física. Já a interpretação esotérica, encontrada no Yoga-Shikha Upanishad, separa as sílabas Ha e Tha como significando, respectivamente, a energia do sol e da lua. Neste sentido, Hatha Yoga assume a conotação de uma prática que se faz para unir ou equilibrar os pares de opostos representados pela força solar e lunar, o masculino e o feminino, o positivo e o negativo, o exterior e o interior, a força e a suavidade, etc. No corpo sutil, estas duas forças estão representadas pelo par de canais de energia (nadis) cahamados de Ida Nadi (canal lunar) e Pingala Nadi (canal solar), bem como pelos dois ares vitais principais chamados de Prana e Apana. Assim, em termos sutis, o Hatha Yoga busca unir a força de prana e apana, bem como equilibrar a energia presente nas nadis solar e lunar, criando um fluxo central ascendente pelo canal central (Sushumna nadi), o qual concede o estado meditativo e a evolução espiritual. Retornaremos a estes conceitos mais à frente.
Inserido dentro do contexto do tantrismo, o hatha yoga se propõe a ser praticamente uma alquimia do próprio corpo físico, transformando este corpo mortal em um corpo divino (divya sharira) ou, como a tradição o nomeou, um corpo de diamante (vajra deha).
Os indícios históricos apontam para o fato de que o Hatha Yoga enquanto escola tenha se originado a partir da segunda metade do primeiro milênio d.C. Embora com certeza possamos afirmar que muitas das suas técnicas e práticas sejam ainda anteriores, sua fundação enquanto escola se deve à figura do sábio Gorakshanatha, o qual deu origem à tradição dos Nathas. A este mestre são atribuídos os dois primeiros textos do Hatha Yoga chamados de Hatha Yoga e Goraksha Samhita, dos quais apenas o último foi preservado. A partir de Goraksha surge uma tradição de mestres que posteriormente escreveram os textos que se tornaram os clássicos da literatura do Hatha Yoga. São eles o Hatha Yoga Pradipika, de autoria de Svatmarama Yogendra, o Gheranda Samhita, que presume-se tenha provindo de um sábio chamado Gheranda, e por fim o Shiva Samhita, o qual se apresenta como sendo os ensinamentos do próprio deus Shiva. Outros textos importantes dentro desta tradição são o Yoga Yajñavalkya e o Yoga Chudamani Upanishad.
Sobre o texto Hatha Yoga Pradipika, presume-se que tenha sido escrito no século XIV. A obra divide-se em quatro capítulos dos quais o primeiro descreve as técnicas de ásana, o segundo as técnicas de pranayama, o terceiro as técnicas de mudra. O quarto capítulo são instruções sobre samadhi, o estado de super-lucidez.
Já o Gheranda Samhita é posterior ao século XVI e apresenta um sistema bem mais codificado das etapas do caminho do Hatha Yoga. A obra se subdivide em sete partes, cada qual explicando uma etapa do processo yóguico. São elas:
1) Shatkarmani, os seis atos purificatórios.
2) Ásanas, as posições físicas.
3) Mudras e bandhas, os gestos sutis.
4) Pratyahara, o controle dos sentidos.
5) Pranayama, as técnicas respiratórias.
6) Dhyana, a meditação.
7) Samadhi, a super-consciência.

Quanto ao Shiva Samhita, o qual presume-se que tenha sido compilado entre os séculos XVII e XVIII, encontraremos neste texto uma elaboração filosófica um pouco mais detalhada acerca da metafísica dos Vedas. Aqui a prática do hatha yoga se une à filosofia Vedanta, a qual explica a união entre a alma individual (atma) e a alma universal (paramatma) através do descortinamento da ilusão criada por Maya. O texto de subdivide em cinco partes, das quais a primeira versa sobre a unidade entre o ser individual e o ser universal. A segunda parte explica a anatomia do corpo sutil. A terceira parte explica Ásana e Pranayama. A quarta parte versa sobre os Mudras. A quinta parte contém explicação sobre os chakras e sobre os sistemas de Mantra, Hatha, Laya e Raja Yoga.

 

Técnicas do Hatha Yoga

As técnicas do Hatha Yoga podem, em geral, ser divididas em:

1. Kriya ou Shodhana – “métodos de limpeza ou purificação”
2. Ásana – “posturas”
3. Mudra – “gestos para controles neuromusculares”
4. Nidra – “técnicas de relaxamento”
5. Bandha – “constrições ou controles musculares”
6. Pranayama – “técnicas de respiração e controle dos ares vitais”
7. Mantra – “vocalizações de sílabas e palavras sagradas”
8. Dhyana – “meditações e visualizações”

 

 

Bibliografia

BHATT, G. P. The Forceful Yoga. Delhi: Motilal Banarsidass, 2004.

DAYANANDA, S. Srimad Bhagav Gita. Chennai: Arsha Vidya 2009.

DESIKACHAR, T. K. V. O Coração do Yoga. Editora Jaboticaba.

FEUERSTEIN, G. A Tradição do Yoga. São Paulo: Pensamento, 1998.

PRABHUPADA, B. S. Bhagavad Gita como ele é. Bhaktivedanta Book Trust, 1995.

SHANKARACHARYA, S. Tattwabodhah. Vidya Mandir, RJ.

VEDA BHARATI. Yoga Sutras of Patanjali with the exposition of Vyasa. Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 2004.

YOGENDRA, S. Hatha Yoga Pradipika. Florianópolis: Instituto Dharma Yogashala, 2002.

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