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O Corpo no Tantrismo  (corpo universo - corpo sagrado - corpo diamante)

O Corpo no Tantrismo (corpo universo - corpo sagrado - corpo diamante)

avatarDiego Cerqueira Rodrigues data 20/09/2016

Antes de tratar da epistemologia da palavra tantra, ou mesmo de abordar definições e conceitos presentes na tradição do tantrismo, gostaria de propor a seguinte reflexão:

Visualize o seguinte contexto: um seleto grupo de pessoas que se apresenta como líderes religiosos, detentores de um tipo de conhecimento soteriológico exclusivo. Para completar esta cena mental, imagine agora que esses líderes desenvolvem uma “conveniente ideia” de cobrar (muitas vezes de pessoas que mal têm condições de arcar com necessidades básicas de sobrevivência) pela transmissão destes “preciosos conhecimentos espirituais” com o intuito de salvá-los do sofrimento e escuridão.  

Imagino que, nos dias de hoje, não seja uma tarefa muito complicada conceber um panorama como esse.

A abordagem principal deste texto será a apresentação do tantra, ou tantrismo como uma corrente multicultural que influenciou profundamente diversos aspectos da sociedade indiana como a arte, a literatura, a filosofia, a arquitetura e a visão sobre a espiritualidade. Particularmente, gosto de pensar o tantrismo como uma expressão de contracultura, ou seja, um movimento popular que contrapunha alguns paradigmas arraigados na sociedade da época. Para entendermos melhor sobre estes paradigmas, apresento dois deles:

  • A monopolização, por parte dos sacerdotes, dos diversos conhecimentos relacionados à espiritualidade e transcendência;
  • A desvalorização do corpo, visto como algo que atrasava e limitava o crescimento espiritual.

O poder hierarquizado dos sacerdotes era validado por um conjunto de leis conhecidas como Código de Manu. Estas normas (e todas as distorções realizadas ao longo de milhares de anos) acabaram por fortalecer um rígido e engessado sistema social, do qual o sistema de castas é a expressão máxima. É válido lembrar que, inicialmente, o sistema de castas apresentava o propósito de organizar a sociedade através do dharma de cada indivíduo. Ou seja, cada sujeito seria direcionado para diferentes segmentos da sociedade, de acordo com suas vocações e propósitos.  Porém, boa parte deste sistema sucumbiu ao forte desejo pelo poder e exploração que tanto acompanhou (e ainda acompanha) a raça humana.

Simplificadamente, os agrupamentos sociais (varṇa) que deram origem ao sistema de castas  apresentam a seguinte estrutura:

Há ainda uma quinta classe conhecida como os intocáveis (não utilizarei aqui um termo específico para designar esta casta, porém, é comum a utilização dos termos paria, dalit ou chandala), que ficaram relegados à margem da sociedade.

*Convite a uma pequena pausa para a seguinte reflexão:

Percebam a dimensão da crueldade do termo “intocável”. Essa designação torpe enquadra um grupo específico de seres humanos em uma categoria, na qual a sua simples presença já é motivo de contaminação. Segue um trecho do código de Manu sobre os intocáveis:

“Que tenham como vestimenta as roupas dos mortos, que seus pratos sejam potes quebrados, que seus adornos sejam o ferro, que se desloquem incessantemente de um lugar para outro”. (...) “Que homem algum, fiel aos seus deveres, tenha relação com eles. Eles só devem ter negócios entre si e casar apenas com os seus semelhantes. ”

Na outra polaridade existem os brahmanes. A seguir mais um trecho do Código de Manu:

“ O brahmane, quando vem ao mundo, é colocado no primeiro nível nesta terra. Soberano senhor de todos os seres, ele deve velar pela conservação do tesouro das leis civis e religiosas. ” (...) “ Tudo que existe no mundo é, de alguma forma, propriedade do brahmane. Por sua progenitura e nascimento eminente, ele tem direito a tudo o que existe”.

Este código era, muitas vezes, seguido ao pé da letra por uma sociedade patriarcal e dominadora. Infelizmente, resquícios desta mentalidade se fazem presentes até hoje na sociedade indiana.

E é para contrapor este contexto sociopolítico que ressurgem - por volta do século VI d.C. - as ideias do tantra. Eu digo ressurgem, uma vez que o tantra não é uma invenção específica desta época. Muitos indícios históricos revelam que certos aspectos do Tantra já eram praticados em uma antiga civilização localizada no vale do Rio Indo (atual Paquistão). Esta sociedade que floresceu por volta de 3500 a.C. apresentava algumas particularidades, entre elas:

  • Características matriarcais;
  • Pacífica e espiritualizada;
  • Organização social coerente;
  • Estrutura urbana muito avançada para a época.

Mohenjo-daro e Harappa eram as principais cidades desta civilização tão complexa e misteriosa quanto as razões do seu declínio e desaparecimento. (Antes que este texto se torne um singelo ensaio sobre as antigas civilizações do Vale do Rio Indo - surgimento, apogeu e decadência - eu escolho parar por aqui para, possivelmente, em um momento oportuno, retornar a este assunto com a atenção exclusiva que ele merece).

Com esta contextualização sócio-histórica inicial será possível compreendermos de maneira mais clara a contribuição do tantrismo na vasta trajetória do Yoga, bem como as marcantes influências tântricas nas práticas de Hatha Yoga.

Existem algumas interpretações possíveis para a palavra tantra. Neste texto usarei a seguinte: Tan (instrumento) Tra (estender, expandir), ou seja: instrumento de expansão.

Assim, o tantra propõe a expansão da consciência através de um caminho totalmente experiencial, no qual o sagrado e o mundano caminham de mãos dadas com passos firmes rumo à libertação dos véus que encobrem a nossa verdadeira natureza.

Para o tantra todo o universo é a manifestação da interação entre Shiva (consciência pura, princípio masculino) e Shakti (energia primordial da criação, princípio feminino).

Com base nesse pensamento, temos uma das características fundamentais do tantrismo: o culto à grande Deusa como uma manifestação suprema da Shakti. Isto é observado desde o respeito a natureza até a reverência à diferentes deidades femininas. Inclusive, no tantrismo cultiva-se a ideia de que toda a mulher merece ser reverenciada e respeitada como uma manifestação da Mãe Divina (fonte ilimitada da natureza criadora).

Neste sentido, o tantrismo apresenta um resgate à uma cultura matriarcal e pacífica, na qual existe uma forma rara de espiritualidade democratizada que se manifesta através da sacralização das experiências cotidianas.

No tantrismo, saṃsāra¹ é nirvāṇa² - o ciclo incessante de nascimento/morte¹, e todas as experiências provenientes deste processo podem ser fonte riquíssimas de aprimoramento e crescimento espiritual.  As experiências de iluminação² podem ser construídas ao longo de todo o caminho e não apenas ao final. Ou seja, no tantrismo, o sādhakā (praticante) e o sādhanā (o caminho de prática) estão totalmente integrados, pois o praticante busca estar totalmente alinhado (em pensamentos, palavras e ações) com o caminho que escolheu trilhar.

Neste caminho, o corpo tem papel fundamental, pois se trata de um multiplicador de aprendizados significativos e potencializador de experiências transcendentais.

Apresento agora, o que considero como as três visões fundamentais do corpo sob a perspectiva do tantrismo:

 

Corpo Universo

 “Tudo o que está aqui, está lá. O que não está aqui não está em lugar nenhum”. Esta frase do Vishvasara Tantra transmite a ideia do microcosmo como uma representação fidedigna do macrocosmo. Ou seja, em cada célula do precioso corpo humano está presente a essência do universo. Para o tantra, o universo consiste na associação entre consciência e energia que ocorre através de um processo contínuo de criação-recriação-manutenção-mutação. Esta mesma associação (e processo) podem ser verificados em cada um de nós.

É comum encontrarmos nos antigos tratados de Hatha Yoga correlações entre o corpo humano, a natureza e o cosmos. Não seria nenhuma incongruência afirmar que estes antigos yogis, que desenvolveram diversas técnicas de conscientização do corpo físico e sutil, estavam, indiretamente, investigando e desvendando, também, inúmeros segredos do universo.

​Encontramos as seguintes passagens no Shiva Samhita:

​"Neste corpo existe a montanha Meru , juntamente com sete ilhas . Também existem rios, oceanos , campos e os guardas dos campos." Cap. 2 - 1 

"Neste corpo existem videntes e sábios, todos os planetas e estrelas, caminhos de peregrinações e santuários sagrados, bem como as divindades dos mesmos." Cap. 2 - 2

"A lua e o sol, que são responsáveis ​​pela criação e destruição (do universo) se movem no corpo, no qual também existe o éter, ar, fogo , água e terra." Cap. 2 - 3"

"Tudo isto está devidamente organizado neste corpo, que é chamado Brahmanda (microcosmos), - aquele que possui esse conhecimento é, sem dúvida, um yogi." Cap. 2 - 5

 

Corpo Sagrado

Ao investigarmos a história de boa parte das práticas religiosas que surgiram durante a trajetória da civilização humana, poderemos constatar que durante centenas de anos o corpo foi rotulado como algo que limitava e atrasava o crescimento espiritual. Desta forma, foi sendo fortalecido o paradigma da carne x espírito.

Contrapondo tal contexto, o tantrismo apresenta a ideia do “Corpo Divino”, ou seja, se “o corpo é o templo da alma”, tudo aquilo que faz referência a utilização do corpo deve ser sacralizado. Ora, se estamos de passagem por esta existência material, nada mais coerente (e inteligente) do que utilizar com sabedoria o instrumento mais tangível de que dispomos - o nosso próprio corpo - como fonte de aprimoramento dos mais diversos aspectos do nosso Ser.

Talvez seja esse um dos aspectos mais belos e importantes do tantra e, ao mesmo tempo, aquele que sofre as maiores deturpações. Se a ideia é tornar toda a expressão corporal um ritual sagrado, nada mais coerente do que transmitir este propósito para a relação sexual (maithuna), que é vista como a união sagrada e respeitosa entre Shiva e Shakti. Infelizmente, boa parte do ocidente disseminou uma visão distorcida do tantra como um conjunto de técnicas exóticas potencializadoras do prazer sexual.

Um dos propósitos do Hatha Yoga é justamente desenvolver este corpo divino: é a possibilidade da fusão entre jivatman (consciência individual) com paramatman (consciência cósmica). O primeiro passo nesta caminhada passa por um processo de consciência corporal, no qual as técnicas psicofísicas desenvolvidas no Hatha Yoga se mostram como o aspecto mais conhecido deste processo. Porém, existem alguns procedimentos específicos descritos em antigos tratados tântricos (como o Hastapujavidhi) como o nyasa que consiste em visualizar diferentes deidades em regiões específicas do corpo, a fim de despertar tais forças no próprio corpo do praticante. Lembrando que, no tantrismo, o praticante busca não apenas a sua identificação com a divindade almejada, mas sim, tornar-se ele próprio tal divindade.

 

Corpo Diamante

Chegamos a um ponto crucial para entendermos as origens tântricas das técnicas do Hatha Yoga. A palavra Hatha, além da definição mais conhecida (Ha=Sol e Tha=Lua), apresenta também outros significados, como por exemplo vigor / vitalidade, ou seja, para que o praticante realize a divindade em seu próprio corpo é importante que este instrumento seja purificado, cuidado e fortalecido.

Segue uma passagem do Gheranda Samhita:

"O corpo é como uma vasilha de barro crua que, se submergida na água desintegra-se. Por isso, deve ser exposto ao fogo do Yoga para fortalecer-se e purificar-se." Cap. 1 - 8.

Os mais clássicos e importantes tratados de Hatha Yoga (Hatha Yoga Pradipika, Goraksha Shataka, Geranda Samhita e Shiva Samhita) demonstram claramente a importância de se cultivar um corpo consciente e saudável para que este se torne um instrumento de aprimoramento e crescimento espiritual. Nestes textos, que fundamentam a prática do Hatha Yoga, a metodologia de organização e apresentação das técnicas psicofísicas se faz respeitando a lógica do “denso para o sutil”, ou seja, inicialmente o praticante entra em contato com técnicas mais tangíveis, como: shatkarmas (purificações), asanas (posturas), bandhas (travas ou neurocontrações sutis em pontos energéticos específicos), mudras (gestos simbólicos) e pranayamas (disciplina sobre a energia vital utilizando-se de técnicas respiratórias). Gradualmente, o praticante vai se tornando apto a vivenciar outras técnicas mais sutis que conduzem ao estado meditativo.

Assim, a harmonia do corpo vai gradativamente atingindo a mente do praticante. Inclusive, alguns destes textos apresentam a ideia de que um dos objetivos da prática de Hatha Yoga é conduzir à prática de Raja Yoga¹ (¹referência ao Yoga Sutras de Patanjali). Ou seja, a prática de Hatha Yoga conduz à prática do Samadhi, que por sua vez, possibilita ao praticante atingir Moksha (a libertação).

O que é a vida? Vida é Processo contínuo... Multilateral, multifacetada, multidimensional, múltiplas mutações... Quem sou eu?Eu sou esse Processo... multiprazer!

Referências

  • Eliade, Mircea. Yoga: Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena, 1996.
  • Lysebeth, André Van. Tantra: O Culto da feminilidade. São Paulo: Summus, 1994.
  • Souto, Alicia. A Essência do Hatha Yoga. São Paulo: Phorte, 2009.
  • Zimmer, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 2003.

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