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Respiração, Pranayamas e a Energia que sustenta a vida
É possível dizer que Respiração e Vida são, em essência, quase sinônimos. Podemos constatar esta afirmação observando desde o processo de respiração celular (responsável por gerar a maior parte da energia de que dispomos), até o mecanismo de movimentar ar para dentro e para fora dos pulmões que nos acompanha do primeiro ao último sopro vital.
A nossa primeira respiração é (do ponto de vista fisiológico) a mais árdua, pois, até então, a abençoada mamãe nos fornecia o oxigênio (e todos os nutrientes necessários) através da placenta e do cordão umbilical. Quando nascemos, é necessário um grande esforço para preencher de ar todas as vias que até então estavam repletas de líquido. O nosso primeiro sopro vital é o exemplo máximo da expressão: ‘doloroso, porém, necessário’. Trata-se do primeiro grande marco do nosso ciclo de existência na Terra.
No Yoga a respiração também tem papel fundamental no caminho de aprimoramento do praticante, pois é através dela que são estruturadas as técnicas de pranayamas. Estas técnicas, além de todos os benefícios relacionados às melhorias do sistema respiratório, atuam também no sistema nervoso central, influenciando no equilíbrio de aspectos fisiológicos, emocionais e psíquicos. Além disso, os pranayamas podem contribuir diretamente na capacidade de estabilizarmos a mente e torná-la receptiva à meditação.
Entretanto, ao analisarmos etimologicamente a palavra pranayama perceberemos em sua constituição dois termos provenientes do sânscrito: prana (alento, energia vital) ayama (regulação, expansão). Ou seja, em essência, pranayama não se trata apenas de um conjunto de técnicas respiratórias. O seu propósito é ainda mais profundo: regular de forma consciente a energia que sustenta a vida de todos os seres – o prana.
Os antigos yogis, verdadeiros pesquisadores de si mesmos, perceberam que a forma mais tangível e eficiente de influenciar na fluidez do prana era através da respiração. Atualmente, existem diversas comprovações cientificas de como o padrão respiratório influencia no padrão emocional, mental e na harmonia geral do organismo.
Para auxiliar em uma compreensão mais clara sobre os pranayamas vou utilizar como base alguns conceitos presentes em obras fundamentais do Yoga como o Yoga Sutras e alguns textos clássicos do Hatha Yoga como o Hatha Yoga Pradipika, Gheranda Samhita, Goraksha Shataka e o Shiva Samhita.
Iniciaremos pelo Yoga Sutras:
Antes mesmo de Patanjali tratar especificamente sobre pranayama no capítulo dois do Yoga Sutras, ele apresenta ainda no capitulo um o seguinte:
pracchardana vidhāraṇābhyāṃ vā prāṇasya
- (A mente torna-se clara pelo cultivo) de uma respiração regular e consciente. (Y.S. 1.34)
- A respiração é tratada aqui como uma das estratégias que podem auxiliar o praticante a remover os obstáculos (vikṣepa) que o impedem de desenvolver lucidez e evoluir na senda do Yoga.
No sistema proposto por Patanjali, os pranayamas aparecem como sendo o quarto passo de um total de oito (aṣṭāṅga). Ou seja, após integrar os Yamas, Niyamas (princípios universais que constituem uma espécie de conduta moral) e Asanas (posturas psicofísicas) o praticante pode então assimilar mais adequadamente as técnicas de regulação do prana.
Segue agora o que é dito sobre pranayamas nos Sutras de Patanjali:
tasmin sati śvāsa-praśvāsayor gati-vicchedaḥ prānāyāmaḥ |2.49|
- Com a postura dominada, segue-se o controle do alento (pranayama), que é o intervalo entre a inspiração e a expiração.
bāhyābhyantara-stambha-vṛttir deśakāla-saṃkhyābhḥ paridṛṣṭo dīrghasūkṣmaḥ |2.50|
- O controle do alento (pranayama) possui inspiração, expiração e suspensão e quando observado tempo, lugar e número torna-se prolongado e sutil.
bāhyābhyantara-viṣayākṣupī caturhah |2.51|
- Quando não é acompanhado por inspiração e expiração então é um estado avançado da regulação da respiração.
tataḥ kṣīyate prakāśāvaraṇam |2.52|
- A partir disso desaparece o que encobre a luz.
dhāraṇāsu ca yogyatā manasaḥ |2.53|
- E a mente fica preparada para a concentração
É possível perceber que, apesar de não oferecer nenhuma descrição técnica de como realizar os pranayamas, Patanjali apresenta definições importantíssimas que constituem grandes auxiliares na compreensão do conceito essencial de pranayama (o detalhamento técnico de como realizar os pranayamas aparecerá mais tarde na literatura do Hatha Yoga).
Patanjali apresenta o pranayama como mais uma etapa que irá contribuir para a estabilização da mente do praticante. Com o crescimento gradual de tal estabilidade (iniciada no corpo através dos asanas) o praticante vai estabelecendo uma respiração cada vez mais profunda (dīrgha) e sutil (sūkṣma) até o ponto em que a necessidade de inspirar e expirar desaparece. Esta pausa respiratória (kūmbhaka) é, segundo Patanjali, a principal forma de pranayama, pois através dela é que o praticante alcança o grau máximo de clareza mental e fluidez de prana, tornando-o apto ao processo meditativo.
Vou apresentar agora alguns trechos (relacionados aos pranayamas) provenientes dos principais textos clássicos do Hatha Yoga. Esta literatura é profundamente influenciada pelo Tantra, tradição na qual a experiência prática tem papel fundamental, na medida em que torna tangível os conceitos essenciais apresentados por Patanjali. Como foi dito anteriormente, é neste período (entre o séc. XII a XVII) que ocorre o desenvolvimento da maioria das técnicas respiratórias que conhecemos hoje em dia.
Trechos selecionados...
“Depois de conhecer asanas, o yogin, com seus sentidos sob controle e alimentando-se moderadamente com comida saudável, deve praticar pranayama sob a orientação do guru”. (Hatha Yoga Pradipika)
“Há vida enquanto há prana trabalhando no corpo. Se a respiração cessa de trabalhar significa morte. Assim, a respiração deve ser regulada”. (Hatha Yoga Pradipika)
“Somente quando todo o grupo de nadis, que estão ordinariamente cheio de impurezas, purificarem-se, o yogin será capaz de regular o prana”. (Hatha Yoga Pradipika)
“Agora apresentarei as regras corretas de pranayama. Somente através de sua prática, um homem pode se parecer com Deus”. (Gheranda Samhita)
“Com os nadis purificados, deve-se assumir um asana e praticar pranayama com firme determinação”. (Gheranda Samhita)
“Quando a respiração é instável, tudo é instável, mas quando a respiração se estabiliza, tudo se estabiliza e o yogin, permanecendo imóvel, se estabelece em samadhi. Por isso, a respiração deve ser controlada”. (Goraksha Shataka)
“O corpo do praticante que realiza fielmente as técnicas de pranayamas se torna harmonioso, emite aroma agradável e apresenta uma pele saudável e luminosa. Desta forma, o praticante se torna um reflexo da perfeição”. (Shiva Samhita)
É importante ressaltar que os antigos yogis responsáveis por estruturar a prática do Hatha Yoga se dedicavam diariamente em práticas intensivas, por isso, é comum encontrarmos na literatura original desta tradição a descrição de diversos poderes sobre-humanos (siddhi) que eram desenvolvidos através desta prática disciplinada. Digo isso pois, um estudante desavisado que entrar em contato com estes textos pode achar um grande exagero, ou mesmo “propaganda enganosa” tais descrições. Porém, se levarmos em conta que a prática reduzida e irregular de Yoga que a maioria das pessoas realiza já é geradora de inúmeros benefícios, fico imaginado os efeitos de tais práticas elevadas a sua potência original.
Apenas para que o leitor tenha uma pequena ideia sobre os siddhis (poderes) decorrentes da prática intensa de diversas técnicas citarei aqui apenas alguns: rejuvenescimento - levitação - percepção extra-sensorial - imortalidade - entre outros. É claro que, o objetivo do Yoga nunca foi a aquisição de tais habilidades extraordinárias, muito menos a exibição egóica de tais habilidades. Tal exibicionismo me parece muito mais uma característica da atual geração de ‘pseudoyogis’.
Enfim, outra característica importante destes textos é a investigação da anatomia e fisiologia sutil. É muito comum encontrarmos descrições detalhadas sobre o prana (energia vital), os nadis (canais energéticos por onde flui o prana) e os chakras (vórtices de convergência desta energia). Neste sentido, além da importância dos pranayamas para estabilizar a mente, estes textos vão falar da importância das técnicas respiratórias no processo de purificação dos nadis.
Descreverei abaixo (de forma sucinta e inicial) três técnicas de pranayamas que aparecem nos textos clássicos do Hatha Yoga:
ujjayi – respiração vitoriosa
Inspirar lentamente através de ambas narinas (com a glote semi-fechada, produzindo um som de tal modo que seu toque seja sentido desde a garganta até o peito. Após pequena pausa com o pulmão cheio (acompanhada de jalandhara bandha), fechar a narina direita com o polegar direito e expirar pela narina esquerda.
nadi shodhana ou anuloma viloma – purificação dos nadis (respiração alternada)
Sentado em uma postura confortável com a coluna ereta o praticante deverá fechar a narina direita com o polegar direito e inspirar através da narina esquerda, em seguida deverá fechar a narina esquerda com o anular (pequena pausa com o pulmão cheio acompanhada de jalandhara bandha) e expirar pela narina direita, logo após inspirar pela mesma narina, fechar a narina direita com o polegar direito (pausa) e expirar pela narina esquerda (repetir este processo o quanto for confortável).
bhastrika – respiração do fole
Sentado em uma postura confortável com a coluna ereta o praticante deverá contrair o abdômen de forma que o ar seja expulso pelas narinas e em seguida relaxar o abdômen de forma que o ar seja absorvido pelas narinas, ou seja, não há nenhum “esforço” por parte do nariz, no sentido de inspirar e expirar, este movimento ocorre pela ação mecânica do abdômen. Ao final de algumas repetições ritmadas o praticante deverá fazer uma pequena pausa com o pulmão cheio (acompanhada de jalandhara bandha) e em seguida expirar pela narina esquerda.
Lembrando que as técnicas de pranayamas, por apresentar efeitos intensos relacionados a diversos aspectos do indivíduo, devem ser praticadas a partir da orientação e acompanhamento de um professor experiente e competente.